quinta-feira, 10 de setembro de 2009

Se calhar ela não era bem um Tyrannosaurus rex...

A vida é uma cadeia de acontecimentos que a memória, por vezes, nos permite reviver, como o rebobinar de um filme.

Na verdade não foi uma boa relação, esta entre mim e a "Maria de Jesus. Não o foi enquanto criança e piorou com o passar dos anos.
Mãe é mãe e reconheço que em tempos de penúria ela foi um pilar importante na minha formação, mas cedo as enormes diferenças de personalidade cavaram entre nós um fosso intransponível que o passar do tempo só agravou.
Sendo o último rebento nascido "fora de tempo", de um casamento onde reinava o terror, senti-me sempre como o filho indesejado, o fardo que já ninguém esperava carregar e não era raro encontrar fora de casa o reconhecimento que ali me era negado.
Visto como menino prodígio desde os bancos da escola primária e como "o puto atinado" que, aos 11 anos, assumia demasiadas responsabilidades para a idade, em casa não passava do "vadio" que depois do ovo estrelado com esparguete, ao fim de um dia de trabalho, só queria era "jogo de bola", no relvado de Sete Rios.
Confesso que essa visão deturpada daquilo que eu realmente era, aliada à constante comparação injusta e perversa com um pai de merda, que foi tudo aquilo que eu jamais seria capaz de ser, amargurou e endureceu o meu coração de menino, transformando o "puto" dócil e carinhoso, num adolescente rebelde e num homem intolerante a quem só as desditas da vida fizeram reaprender tardiamente as virtudes do perdão.
Separados por incompatibilidades insanáveis, dispersos em constantes explosões de fogo e gelo, quis o destino que os derradeiros momentos de ambos estivessem bem mais próximos do que os anos de vida de antagonismo mal disfarçado.
Em Março de 2005, enquanto eu me debatia com o cancro que ainda hoje me corrói o discernimento e me traz noites de angústia pespegado a este monitor , no mesmo hospital a minha mãe morria de enfarte do miocárdio.
Não chegámos a fazer as pazes nem tivemos tempo para despedidas e apesar de eu nunca ter sido muito dado às coisa do espírito, às vezes interrogo-me se tudo terá sido fruto do acaso ou se um de nós estaria a puxar o outro para a morte.
A vida é filha da puta e muitas vezes leva-nos a tomar atitudes que magoam inadvertidamente aqueles que mais amamos.
Mas se por baixo daquela carapaça, negra e fria, existia algo mais do que um coração empedernido, agora é demasiado tarde para saber. Por isso é que nunca devemos regatear o amor aos nossos filhos.
Eles não nos pediram para nascer.

10 comentários:

Pronúncia disse...

Comovente...

A vida pode ser madrasta, mas parece-me que aprendeste a lição do que não deve ser uma relação pais/filhos. És caso raro...

Desejo-te as melhoras e que consigas vencer a doença. Força!

Pi disse...

Lembro-me que a minha avó conta muitas vezes o que mais a atormenta desde sempre, o facto de ser filha bastarda de um homem que nunca conheceu. A mãe quis atirá-la de um penhasco ao mar de Inverno, e ainda hoje ela nem lhe pode com o cheiro. Mesmo assim mete muito amor nas palavras quando diz "a minha mãe era muito bonita".
Houve em ti um desejo de reconciliação, mas mais que isso houve em ti um desejo de ouvir dela um perdão (parece-me). Não foi dito, mas eu acredito que na hora da morte a luz que se diz ver é branca e traz-nos a paz que precisamos para que limpemos a consciência de todos os males cometidos, todas as desavenças... num perdão comum.

Olhos Dourados disse...

Bem, a tua vida não cede ter sido fácil!

S* disse...

Eu começo a achar que o nosso Galo é um homem porreiro. Ao menos sabe aprender as liçoes. ;)

Anjo De Cor disse...

Sem palavras... num livro que li há alguns anos atrás dizia que o cancro é acima de tudo um rancor mal resolvido ... nunca acreditei nisso até porque muitos de nós passa por situações mal resolvidas e quando mete a familia torna tudo muito mais complicado...
És um heroi que luta todos os dias, desejo-te rápidas melhoras ;)

Galo disse...

Anjo de Cor

Aprecio e agradeço as tuas palavras carinhosas. Permite-me, no entanto, discordar da última frase.
Não me consigo ver como um herói nesta guerra onde muita gente teima em ver vencedores.
Para mim a "luta" contra o cancro é um luta da ciência. Entre os doentes há apenas os mortos e os sobreviventes, os que tiveram a sorte de descobrir a doença a tempo (o que parece ser o meu caso).

Beijinho grande.

a estagiária disse...

Fred estou a adorar as tuas histórias!!!
Acho que a vida dura de antigamente tornava as pessoas mais frias, mais ásperas.. Ninguém dava aos filhos o carinho que hoje se dá ao animal de estimação.. Aquilo que se queria era que os filhos se criassem rápido, sem dar muita despesa e problemas.. mas duvido que não existisse amor.. Era um amor camuflado.. ao jeito de antigamente..
Por muito áspera que a tua mãe tenha sido, tenho a certeza que nunca quis o teu mal.. apesar das suas atitudes não serem as melhores..
O destino é mesmo tramado...

Galo disse...

S*

O pior desgosto que eu poderia dar a mim próprio, era ser um alcoólico, como o meu pai.
No entanto não necessito de tratamento de choque. Não precisei de um cancro no pulmão para deixar de fumar (fi-lo 14 anos antes, por opção) e bebo moderadamente sem me coibir de apanhar a minha "bezaina" quando me apetece.
Não sei se há algum fundo de verdade na máxima "o que não nos mata ajuda a fortalecer-nos", mas sem dúvida que se soubermos tirar partido dos erros passados, podemos vir a ser pessoas com menos defeitos.
E obrigado pela apreciação.
Não acredito em homens maus por nascimento. Somos todos "boas pessoas", até prova em contrário.

Beijinho

Galo disse...

A todas/os os que me têm mimado e aos quais não dei uma resposta personalizada (nem tenho esse hábito), aqui fica o meu reconhecimento público :P.

A grande lição que consegui tirar desta relação, fez de mim um melhor pai do que os que tive e, apesar do meu feitio entre o mau e o irascível (lololol), nada me dá maior felicidade do que, ao fim do dia, receber a minha filhota com um grande e sentido abraço.

Beijos e abraços e, como dizem os brasileiros, "me esperem", que estou a preparar um texto dedicado às adoráveis meninas frequentadoras do "estaminé" :D

MariaPapoyla disse...

Imagino que não seja fácil lembrar destas memórias passadas... Coisas que não podemos mudar...

Podemos não mudar capítulos passados da nossa história, mas podemos sempre recomeçar, não de novo, mas de outro ponto qq, e escrever um capítulo melhor que o anterior.

O passado já lá vai, o caminho é em frente ;)