A pedido da Patrícia (a da Vírgula, porque Patrícias há praí ao pontapé :D), que deve achar que eu sou o José Hermano Saraiva e quer que conte umas histórias pretensamente interessantes, vou deixar aqui um episódio da minha infância, passado antes da extinção dos dinossauros, numa saudosa Lisboa também ela já extinta há muito tempo.
O texto, que já foi publicado há uns quatro anos num outro blogue que tive, foi sujeito a uma lavagem de cara e uns retoques de maquilhagem, mantendo-se a ideia original. Nem podia ser de outro modo, pois trata-se de uma história verídica.
A minha mãe era uma mulher muito severa e o facto de se ver sozinha no Mundo com dois filhos menores para alimentar e educar, ainda empederniram mais aquele coração tão mal tratado pela puta de vida adversa que lhe calhou na lotaria.
Estava sempre a avisar-me:
- Se eu um dia te for buscar à esquadra, rebento-te com porrada, meu vadio (isto apesar de eu ter 11 anos e trabalhar 9 a 10 horas por dia)!
Por isso, a simples visão de um polícia, fazia soar na minha cabeça todas as campainhas de alarme e na minha frente surgia logo o espectro da “Maria de Jesus” que, de semblante carregado e dedo ameaçador apontado, me dizia:
- Eu mato-te com porrada, meu vadio!
Como naquela época um polícia era um papão, assim que eu “bispava” um na rua, mudava logo de passeio, não fosse o “senhor guarda” ter levado uma nega da patroa, na noite da véspera e embirrar com os meus sapatos rotos.
Ainda não tinham sido inventados os desportos radicais e a miudagem, que nunca tinha ouvido falar em adrenalina, aproveitava os eléctricos da Carris e andava na “pendura”, muitas vezes com o risco da própria vida.
Andar na pendura era perigoso, principalmente porque o “pica” gostava de nos dar com o “alicate” nos dedos para nos obrigar a largar e a cair. Um dia dei um "tralho" tão grande, na Rua da Misericórdia, que quando fui a levantar-me e vi um auto-tanque de gasolina estancar as rodas numa chiadeira de meter medo ao susto, a pouco mais de um metro de mim, quase que me mijei todo. Isto foi na hora do almoço e andávamos naquela palhaçada, do Cais do Sodré para o Príncipe Real e vice-versa, porque como um dos percursos era a subir, dava para saltar em andamento, já que, àquela hora, os eléctricos andavam vazios e havia maior risco de sermos "caçados" :D. Naquela tarde fui para o trabalho agarrado a dois colegas de "profissão", com os joelhos escalavrados e rezei a todos os santinhos que não me mandassem aos recados.
Mas foi numa outra viagem “radical” que eu vi a minha vidinha a andar para trás. Eu morava em Sete Rios e era um “cliente” habitual da carreira n.º 13 (vejam só que merda de número de azar), que ia do Carmo a Benfica, passando pelo Largo do Rato, Amoreiras e Campolide, descendo depois a Marquês de Fronteira, até S. Sebastião, onde entrava na Estrada de Benfica - que na época começava junto à Gulbenkian - e dali pela Praça de Espanha e Sete Rios, onde eu morei nos primeiros anos de Lisboeta à força.
Não sei por que razão, era no Largo do Rato que o pessoal da Carris era rendido e por isso havia sempre muitos “picas” e guarda-freios ali à espera.
Naquele fatídico dia eu ia feliz da vida, porque o eléctrico estava mesmo a abarrotar e assim era mais difícil o “pica” dar-me com o alicate nas "falangetas". Mas quando chegámos ao Rato fui obrigado a descer para dar entrada aos passageiros pagantes e, azar o meu, o estribo ficou tão cheio que para não perder a viagem tive de passar para a traseira. Aí tentei enfiar um pé no engate do reboque e segurar-me à janela. Só que eu era muito pequenito e para chegar à janela tive que me agarrar ao farol. Quem se lembra daqueles eléctricos, sabe que tinham um farol composto de um aro tosco de ferro, com um vidro mal "amanhado", preso com um grampo de arame, que ao primeiro puxão para me elevar, se estatelou no meio da rua. E para minha desgraça estávamos no Largo do Rato. Largo do Rato onde os “picas” e guarda-freios eram mais que as mães e me “filaram” ainda o vidro não tivera tempo de bater chão :D.
Agarrado pelo casaquinho do exame da 4.ª classe, em menos de dez segundos fiz uma retrospectiva completa do filme da minha vida. A preto e branco, como qualquer retrospectiva que se preze, a "Maria de Jesus" aparecia à minha frente de dedo apontado e com uma grande carga de porrada na bagagem. Aquilo era caso para casa de correcção e aterrorizado imaginei os polícias na esquadra do Rato a “molharem a sopa” com a aprovação da "velha", que gritava: só se perdem as que caírem no chão, seu vadio malvado... isto se antes os próprios “picas” não me “fizessem a folha", mesmo ali no meio da rua, com a aprovação dos transeuntes, porque naquele tempo o pessoal estava-se mais era a cagar para os maus tratos infantis e até se podia dar o caso de algum "mirone" mais afoito aproveitar para descarregar as frustrações da vida num desgraçado dum puto, que em vez de andar a brincar, tinha era que fazer pela vida, pois lá em casa nem havia frigorífico porque não havia comida para pôr lá dentro.
Mas o pior era a "Maria de Jesus". Tanto que ela me avisou, catano... e logo ali ao pé da esquadra e com os “manfios” da carris para me “filarem”, é que havia de cometer aquela "argolada"... e quem é que ia pagar o vidro, se nós nem tínhamos dinheiro para mandar cantar um cego? O primeiro a pagar a "factura" ia ser eu, com um tareião "de criar bicho". Mas quem é que ia aturar a "velha"? Quem é que ia conseguir encará-la enquanto ela andasse com aquela "carranca" de meter medo ao pirata mais feroz das Caraíbas?
Oh que sorte do caraças. Cum cabaz de cornos, mais à ideiazinha de merda de mudar de "poleiro", logo num sítio daqueles. Que grande "tanso" que eu fui. Juro que se me livro desta, tão cedo não volto a pôr os pés no Largo do Rato (já naquele tempo o Largo do Rato era tão mal frequentado… daaaaassssse!). E o pior de tudo é que eu, que sempre tive o pé leve, naquele dia parece que tinha sapatos de chumbo. Não consegui arredar pé e devo ter ficado com um ar tão acagaçado que os tipos tiveram pena de mim e deixaram-me ir embora.
Que raio de porra! É que eu até tinha dinheiro para o bilhete. Aquilo de andar na "pendura" era um desporto e gajo que pagasse bilhete era considerado um "mariquinhas". Mas apesar de tudo, apesar de naquele dia eu estar fadado para interpretar o papel do "otário", consegui não me "desmanchar" de todo e disse aos gajos da Carris que estava "teso". Mais um "choradinho" e eles ainda me davam dinheiro para o bilhete eheheh.
Meu Deus, afinal ainda havia adultos bem mais “otários” do que eu. (ih ih ih)
Ufff! Ainda hoje, quando passo no Largo do Rato, sinto um arrepio na barriga.
Vá-se lá saber se por causa deste episódio milenar, se com receio de encontrar o Sócrates pela "proa" :PPP
Para as gentes do Norte e para os habitantes do interior "desquecido" e ostracizado, que conheçam mal a Capital, é no Largo do Rato que está implantado aquele verdadeiro ninho de ratazanas, que é a sede do PS. :D
Há 2 anos
9 comentários:
Olá!
Li o texto todo até ao fim...eu a imaginar-te nessa cena, sorri.
Acedito que deves ter passado um mau bocado, dsculpa, mas tive que sorrir:=)
Beijocas
Ai Fred.. o que eu gostei desta história... :)
Tempos difíceis esses.. mas com um sabor tão mais intenso que o nosso de agora...
Nunca vou ter histórias como estas tão giras para contar aos meus filhos...
Oh pah! Que raio de deporto foste arranjar! :P Andar na pendura...
Deve ter sido um bocado bem mau!...
A minha "maria de jesus" não faz ideia de metade dos desportos da minha infância, e ainda bem! :P
LLLLOOOOOOOLLLLLL. Estou a imaginar o teu terror a pensares na tua mãe. lol.
Bem, no meio de tanto azar, ainda tiveste sorte!
Claramente a Maria de Jesus não te deu porrada suficiente, seu vadio.
Pudesses tu andar à pendura ainda hoje, não fossem os teus, agora oficiais, pés de chumbo.
Ui, um galo com cara de pinto.
Eh Fred, que história!
É impossível não sorrir enquanto se lê a aventura cheia de expressões caricatas. =)
Fez-me lembrar assim por momentos, num flash, uma cena do Oliver Twist, num ambiente criado 'plo Sr. Dickens.
Aposto que mais histórias preenchem a tua memória. Reparaste em como gostaram de te lêr? Sempre que te apetecer já sabes que aqui encontras quem te leia!
E num ambiente bem mais moderno e muito menos radical, lembrou-me a mim na sexta feira passada, escondida entre os bancos do combóio a ver se o pica não dava por mim. Mas raios parta o homem que lá me foi pedir o dinheiro, ainda fiz cara de Alentejana parva, que não sabe onde fica a capital, com a pergunta "Diga?" e ele responde "Diga você, onde quer ir?", já me tinha mancado, mas ainda assim continuei com a parvidade "Olhe nem sei, é a estação antes de passar a Ponte!")
=)
O texto estava bom, é pena ter metido o rato do Sócrates ao barulho...
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